“O feiticeiro é como a Arlesiana: fala-se muito dele,mas ninguém o vê...” (Marc Augé)
A benzedura pode ser caracterizada como uma atividade principalmente terapêutica, a qual se realiza através de uma relação dual – cliente e benzedor. Nessa relação, a benzedeira ou benzedor exerce um papel de intermediação com o sagrado pela qual se tenta obter a cura, e essa terapêutica tem como processo principal, embora não exclusivo, o uso de algum tipo de prece.
Num primeiro momento, pode-se pensar que a benzedura seja um resíduo de tempos passados, como uma grande fortaleza que deixou de ser utilizada e se encontra entregue ao tempo para sua total destruição. Longe disso, a benzedura é um entre outros sistemas de cura que são utilizados pelos grupos populares. O que podemos afirmar é que essa prática (assim como toda prática social) vem sofrendo uma série de modificações. Não poderia ser de outra forma, uma vez que, como toda prática social, a benzedura vai estar sempre num processo de reconstrução, ganhando sentido apenas em razão de sua articulação com o social; portanto, nunca vai ser uma prática estática, detida no tempo; pelo contrário, ela se constitui uma realidade dinâmica (Alves, 1994).
Muitas das benzedeiras entrevistadas na cidade referiram-se ao campo como seu lugar de origem e o local onde se deu a sua aprendizagem ou a origem daquela pessoa que a iniciou – geralmente um membro da família. Contudo, cabe assinalar que aquelas benzedeiras que tinham maior reconhecimento social na sua profissão atribuíam sua aprendizagem a uma experiência mística, situação que será analisada posteriormente.
Ainda que nem na cidade nem na roça tenhamos encontrado uma técnica uniforme, existem certas características que diferenciam este procedimento de cura no contexto urbano e no contexto rural. Uma delas é a perda de hegemonia que a prática da benzedura sofre na cidade. Enquanto no meio rural é a prática popular por excelência, que reina quase absoluta, na cidade, ela compartilha este espaço com inúmeras outras práticas.
Não é esta, porém, a única diferença entre a benzedura da zona rural e a da zona urbana. Talvez a mais significativa delas esteja presente no nome pelo qual as agentes terapêuticas gostariam de ser reconhecidas. Enquanto na cidade elas se autodenominam benzedeiras, na zona rural preferem que sua atividade seja reconhecida como fazer orações, apesar de continuarem a ser identificadas no seu meio como pessoas que benzem. Quando essas pessoas aludem a outras colegas de profissão, estas são referidas como as que fazem benzeduras, sem que exista com isso uma tentativa de desprestígio do seu trabalho, uma vez que ele é claramente diferenciado dos batuqueiros, considerados realizadores de um trabalho para o mal.
Essa recusa a se autodenominarem benzedeiras está vinculada à forte ligação dessas pessoas a uma instituição religiosa, principalmente à religião católica, o que constitui outra das diferenças encontradas entre a benzedura da zona rural e a da zona urbana.
Enquanto as benzedeiras da zona rural, como já vimos, têm uma ligação muito intensa com a religião, principalmente católica – todas elas são freqüentadoras da paróquia, tendo inclusive a autorização do padre para fazer orações em favor daqueles doentes que as procuram –; já entre as urbanas, o estreito vínculo com alguma instituição religiosa não é uma constante. Pode-se observar que quanto às pessoas identificadas com a religião católica, nota-se uma relação de antagonismo com os representantes oficiais da Igreja.
Essas posturas diferenciadas em relação à Igreja Católica também podem ser constatadas quanto ao emprego de símbolos ofíciais do catolicismo, como a utilização de imagens, a Bíblia e a água benta.
Ainda que cientes dessas diferenças, neste trabalho nos limitamos apenas a assinalá-las, restringindo nossa análise às benzedeiras da zona urbana.
“Como uma pessoa aprende a benzer?”, a resposta foi, de início, desconcertante: “É um dom”. Noutra ocasião, ao depararmos com uma grande quantidade de receitas à base de ervas indicadas por Dona Helena, perguntamos se ela levou muito tempo para aprender a utilidade de cada uma dessas ervas. Ao que ela respondeu: “Não tanto, foi o anjo que me ensinou quando estava cega”. Encontramo-nos diante de um conhecimento que não é atribuído a nenhum tipo de aprendizagem, nem formal nem informal, contrapondo-se, por um lado, ao conhecimento médico, o qual responde a um aprendizagem formal, e, por outro, diferenciando-se daqueles terapeutas populares cujo conhecimento é atribuído a uma intuição (Cf. Loyola, 1984). Aqui, trata-se de uma intervenção de forças sobrenaturais.
Eliade (1976) também tem trabalhado sobre este tema no que se refere à transformação do indivíduo em xamã, que pode ser precedida por um acidente ou evento insólito. É o caso, por exemplo, de algum tipo de doença, tal como uma crise epiléptica, da qual a pessoa se cura. A doença seria interpretada como o sinal de que o futuro xamã foi o escolhido pelos deuses. Essas doenças são chamadas por Eliade de iniciáticas, pois recriam dores e sofrimentos infligidos nas torturas dos rituais iniciáticos. A loucura também pode ser vista como um retorno ao caos inicial. Eliade (1976) reconhece três passos comuns às iniciações: 1) Tortura, sofrimento; 2) Morte; 3) Renascimento como um novo ser.
Dona Helena teria perdido a visão, porém, ao recuperá- la nessa experiência mística, ela teria sido designada para uma missão. Saiu da crise duplamente fortalecida: primeiro, no sentido de ser uma escolhida e, segundo, por ter qualidades que anteriormente não tinha, pois passou a contar com uma faculdade especial que lhe permite ver além das pessoas comuns. Isso lhe possibilita saber o que está acontecendo com aqueles que a procuram solicitando ajuda. Assim, esta experiência mística, de alguma forma, permitiu-lhe acesso ao domínio do sobrenatural, ao controle das forças sagradas. O Anjo ao qual seguidamente se refere Dona Helena, passará a ser o seu mestre.
Ao mesmo tempo que esse dom traz à pessoa uma série de qualidades, ele também impõe um ofício: o ofício da benzedura (Oliveira, 1985). Não se trata aqui de uma escolha, de uma opção, mas sim de uma imposição, de uma obrigação que a benzedeira deve cumprir.
O dom obriga, manda, é um compromisso assumido. Ele representa um certo privilégio ao dotar o escolhido de um poder especial, mas também é vivenciado no seu caráter obrigatório de atribuir uma responsabilidade à qual o escolhido não pode fugir (Pereira, 1993). Desta forma, o ofício de benzedeira, semelhante ao ofício de médico, mais que uma profissão, é visto como um sacerdócio, uma missão.
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Dedico este post à minha Avó,
Mestra de Mesa no Catimbó e grande benzedeira.
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Retirado e Compilado de:
A Ciência da Benzedura, por Alberto M. Quintana, EDUSC, 1999.
Perfeito este Post! Salve Salve as Bruxas do Bem...
ResponderExcluirTenho 34 anos, minha mãe é benzedeira, minha vó foi. Passou para minha mãe e para mim, meu caçula de 6 anos já tem forte sinais, benze bebês, creio em benzimentos na nossa família quase ninguém precisa de médico.
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