Seminário de bruxaria
Existe na vida de Clarice Lispector um episódio misterioso e provocador de grande especulação: sua participação no I Congresso Mundial de Bruxaria, realizado em Bogotá, em 1975. O que teria levado a escritora — notoriamente avessa a falar em público — a participar de um congresso dessa natureza? O que fez ela exatamente na ocasião? Clarice estaria envolvida com bruxaria?
Essas eram algumas das perguntas que intrigavam seus admiradores até 2005, quando a Rocco publicou a íntegra de sua intervenção no livro Outros escritos, organizado pelas professoras Teresa Montero e Lícia Manzo. Soube-se então que Clarice não tinha qualquer envolvimento com bruxaria, limitando-se a atuar na área da magia. A magia da criação artística, que ela analisa no conto que apresentou no congresso, O ovo e a galinha, ilustrativo da arte como destino da vida e, sobretudo, como sua transcendência, no sentindo em que assim como o ovo é superior à galinha que o criou, a arte costuma ser maior do que o artista.
A seguir, a abertura de sua fala no Congresso Mundial de Bruxaria, e o conto O ovo e a galinha, lido na ocasião e integrante do livro Felicidade clandestina.
Essas eram algumas das perguntas que intrigavam seus admiradores até 2005, quando a Rocco publicou a íntegra de sua intervenção no livro Outros escritos, organizado pelas professoras Teresa Montero e Lícia Manzo. Soube-se então que Clarice não tinha qualquer envolvimento com bruxaria, limitando-se a atuar na área da magia. A magia da criação artística, que ela analisa no conto que apresentou no congresso, O ovo e a galinha, ilustrativo da arte como destino da vida e, sobretudo, como sua transcendência, no sentindo em que assim como o ovo é superior à galinha que o criou, a arte costuma ser maior do que o artista.
A seguir, a abertura de sua fala no Congresso Mundial de Bruxaria, e o conto O ovo e a galinha, lido na ocasião e integrante do livro Felicidade clandestina.
Literatura e Magia
Tenho pouco a dizer para uma platéia exigente. Mas vou dizer uma coisa: para mim, o que quer que exista, existe por algum tipo de mágica. Além disso, os fenômenos naturais são mais mágicos do que os sobrenaturais. Dois meses atrás aconteceu uma coisa comigo que chego a estremecer, só de pensar. Eu estava angustiada, sozinha, sem perspectiva nenhuma, vocês sabem como é. Quando de repente, sem nenhum aviso, uma chuvarada, seguida por uma ventania, começou a cair. Essa chuva súbita me liberou, liberou toda a minha energia, trouxe calma e me deixou tão relaxada que logo depois dormi profundamente, aliviada. A chuva e eu, nós duas tivemos um relacionamento mágico. No dia seguinte li no jornal, para surpresa minha, que a chuva que tinha me afetado como magia branca, afetara outras pessoas como magia negra. As reportagens diziam que tinha sido uma chuva muito forte, com granizo em alguns lugares, que tinha destelhado muitas casas, que quase provocara a queda de um avião.
Também considero mágico o sol inexplicável que aquece todo o meu corpo. Mágico também é o fato de termos inventado Deus e que, por milagre, Ele existe. Eu mesma, pelo menos conscientemente, jamais lidei diretamente com mágica. No entanto, pintei um quadro, e uma amiga me aconselhou a não olhar para ele, pois poderia me fazer mal. Concordei. No quadro, que chamei de “Terror”, arranquei de mim, talvez através da magia, todo o horror que um ser sente no mundo. A tela era pintada de preto, quase no centro havia uma terrível mancha amarelo escuro, e dentro dessa mancha algo vermelho, preto e amarelo vivo. Parecia uma mariposa sem dentes querendo gritar, sem conseguir. Perto da massa amarela, por cima do preto, pintei dois pontos completamente brancos que talvez fossem a promessa do alívio futuro. Olhar para esse quadro me faz mal.
Não acredito em nada. Ao mesmo tempo acredito em tudo. No dia primeiro de janeiro de 1974 estava parada nos degraus de uma escada perto da casa de um amigo, à espera dele. Fazia muito calor e tudo parecia deserto. Era um feriado e de repente fiquei completamente desesperada, sem perspectiva nenhuma. Cobri o rosto com as mãos e pensei: Por favor, meu Deus, mande-me pelo menos algum símbolo de paz. Então abri os olhos e um minuto depois vi dois pombos perto de mim. Fiquei surpresa e um pouco assustada. Logo depois fomos ao cinema, meu amigo e eu. Perto do cinema havia uma loja fechada, porque era feriado, e vi através da vitrine uma espécie de pote com quatro pombos dentro. No dia seguinte fui até aquela loja e comprei o enfeite de porcelana. No outro dia uma pequena pena de pombo caiu em cima de mim. Eu a perdi. E o episódio com o pássaro aconteceu de forma dramática. Era mais uma vez um dia muito quente e eu estava completamente exausta. Voltava do centro da cidade num táxi. Usava óculos escuros. E tão cansada que apoiei a cabeça no braço, tentando descansar um pouco. Então senti alguma coisa me incomodando, entre a lente dos óculos e o meu olho esquerdo. Tirei os óculos e achei uma pena de pombo. Sem comentários. Dois dias depois fui consultar um médico amigo meu e novamente peguei um táxi. O motorista freou de repente. Perguntei para ele, o que houve? Ele respondeu, quase matei um pombo, mas graças a Deus, ele escapou. Cheguei ao consultório do meu amigo e contei para ele aquela história dos pombos desde o início. E perguntei, qual o significado dessas coisas estranhas? Ele respondeu sorrindo, coisas boas não precisam de explicação. E disse mais, quer que eu lhe dê uma pena de pombo? Eu disse, claro que sim, se tiver uma. Ele se abaixou, pegou uma pena no chão e me deu. Ainda sem comentários.
Um dia aconteceu outra coisa com um amigo meu. Ele tinha um lindo curió, pássaro raro de se encontrar no Rio, especialmente em Copacabana. Uma manhã, quando foi alimentá-lo, viu com tristeza que o curió tinha morrido. Não havia nada que pudesse fazer além de lamentar a morte do passarinho. Uma hora depois a empregada gritou, vem cá depressa, vem ver uma coisa. Todos foram para os fundos da casa e viram, tremendo um pouco, no chão, um curió. O passarinho não tentou escapar e foi posto na gaiola. Comeu e começou a cantar. Eu pergunto, por quê? Para quê? Também não existe resposta para o fato de haver, numa pequena semente, numa simples semente de árvore, essa promessa de vida, o fenômeno de uma semente que contém vida é totalmente impossível. Um escritor brasileiro disse que estar vivo é impossível, e eu acrescento que nascer é impossível.
E para terminar, direi uma coisa que pode parecer absurda, porque o que vou dizer é alta matemática, mágica pura. A mágica em relação ao que se escreve chama atenção para a palavra “inspiração”. Como explicar a inspiração? Às vezes, no meio da noite, dormindo um sono profundo, eu acordo de repente, anoto uma frase cheia de palavras novas, depois volto a dormir como se nada tivesse acontecido. Escrever, e falo de escrever de verdade, é completamente mágico. As palavras vêm de lugares tão distantes dentro de mim que parecem ter sido pensadas por desconhecidos, e não por mim mesma. Os críticos consideram que escrevo o que chamam de “realismo mágico”. E um crítico, não me lembro de qual país da América Latina, escreveu sobre mim: ela não é escritora, é uma bruxa.
E agora quero ouvir o que vocês sabem sobre bruxaria."
Segundo Ana Mariano, em A descoberta do mundo, Clarice faz referência a esse congresso no qual teria ficado apenas um dia porque se deu conta que nada tinha a fazer ali, sua “bruxaria” era outra.
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